30 de setembro é o Dia do Tradutor.
Tem dia de tudo e, claro, tem o nosso.



A data, que também celebra os secretários, é uma homenagem a São Jerônimo, santo padroeiro dos tradutores e grande intelectual que traduziu a Bíblia do hebraico e do grego para o latim (a Vulgata), e a quem eu recorro na hora dos prazos apertados, dores lombares, textos originais mal escritos e quando o café acaba no meio da tarde.
Mas entre alegrias e desesperos, há o amor pela profissão. Não sei e não quero fazer outra coisa.
Enfim, sentimentalismo à parte, comecei a fuçar a interrnê em busca de uma imagem bacana de São Jejê. Encontrei muitas, e algumas delas me inspiraram algumas reflexões e curiosidades. 

Acredito que a pintura mais divulgada do santo seja a de Caravaggio, de 1605.



Eis nosso padroeiro de pena em punho, absorto na leitura e pesquisa, olhos cansados e testa enrugada. A caveira, companheira de meditação, tem uma certa semelhança com a cabeça pensante do tradutor barra santo. A longa barba branca seria mesmo sinal da idade avançada ou consequência biológica de uma vida de intensa preocupação textual? Fica a dúvida no ar.



"São Jerônimo em seu Escritório", de Jan Van Eyck, 1442. 

Um registro de Jejê mais jovem, mas já cansado, e na companhia marcante de seu pet, um leão, que fofo, o que nos remete à incrível incidência de tradutores, revisores e afins que possuem um bichano. Eu tenho quatro. Onze entre dez tradutores têm um gato. Elurofilia detected.


Além do felino, reparem na almofadinha verde no assento do nosso herói. Cuidando da postura e ergonomia, pois pela cara dele, o job vai ser longo. Muito longo.


O chapéu e o manto vermelhos aparecem em vários retratos de São Jerônimo porque ele era cardeal.






Este é "São Jerônimo em seu Escritório", de  Pieter Coecke van Aelst II, quadro homônimo do acima. Sim, os pintores da idade média não eram muito criativos para batizar suas obras. 

Gosto muito desta imagem. Aqui, o santo deve estar com uns 30, 40 anos e continua pedindo inspiração para a caveira. A vida está acontecendo lá fora, vê-se pela janela, mas ele está trancafiado em seu home-office porque tem prazo para entregar o trabalho. Olha a ampulheta ali ao lado, apressando as engrenagens tradutórias dele. Bom, a cara de desânimo não nega.

No peitoril da janela à esquerda, temos uns vidrinhos. Hum. Seriam analgésicos ou estimulantes? Alguma essência calmante, maybe? Quiçá.

Na parede ao fundo, uma inscrição: COGITA MORI, corruptela da expressão VIVERE DISCE, COGITA MORI - "aprenda a viver, não esqueça da morte". 

Na minha parede, as inscrições são bem menos fatídicas:



"São Jerônimo e o Leão em seu Escritório" ou "São Jerônimo Retirando Espinho da Pata do Leão", de Colantonio, 1445.



Olha a cara do leão.

Penso que o foco temático do quadro é a bondade (olha que auréola reluzente) em ajudar um animal selvagem sem temê-lo, já que o felino é seu pet domesticado e santo faz milagre, oras. Mas a presença de elementos comuns à vida de quem trabalha com texto é inquestionável.

Como tradutora, me identifiquei com os post-its na parede, o monte de papel jogado/caído/esquecido embaixo da escrivaninha, os livros bagunçados na estante e o texto estudado todo grifado. E como eu largo o que estiver fazendo para dar atenção às minhas gatas.



"São Jerônimo Penitente no Deserto", de Andrea Mantegna, +/- 1450.


Pronto. Mandaram o Jê fazer penitência.

Mas tradutor é um bicho isolado, mesmo. Eremita, antissocial por conta da própria natureza da profissão. Até o leão parece ter aceitado que hoje não vai rolar nem catnip nem bolinhas de papel para brincar.

Mais velho e mais relaxado - no bom sentido da vibe -, ele já não está mais tão encucado com os textos.  Não tem mais inscrição filosófica na parede, os livros estão fechados e, para mim, ele está tirando um cochilo sentado. Quem nunca?

E observem os pés descalços e o chapéu vermelho no chão - essa é pra quem insiste que a gente trabalha de pijamas.
Sim, eu trabalho trajando pijama e pantufas.


Enfim, são muitas as pinturas que retratam o santo tradutor. E já que fiz essa brincadeira de observação, deixo a releitura da fotógrafa Mônica Silva para o quadro de Caravaggio:





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