Pode parecer aquela anedota sobre a revista masculina em braille para deficientes visuais, mas por meio da colega tradutora e fashionista Jana Lisboa eu conheci o site “Porn for the Blind” - pornô para cegos, projeto voluntário de audiodescrição de vídeos pornográficos.
A primeira (ok, talvez a segunda) coisa que pensei: “Uau, interessante. Haja vocabulário safado!”


Pouco depois, o fenômeno “Cinquenta Tons de Cinza” começou a causar frisson com a recém-rotulada “literatura erótica para donas de casa”. Já adianto que não li e meu primeiro contato com o livro foi por meio de um vídeo de humor em que uma marionete lê um trecho publicado no site da UOL. E foi justamente o tom jocoso que me chamou a atenção, pois aquelas palavras não pareciam causar sensação de prazer nos olhos e ouvidos mais aguçados.


Exemplos?


-Você é muito cheirosa – murmura ele (‘Cheirosa’ é agrado de mãe. Me lembra sabonete Johnson...Sugestão de uma amiga: "Que cheiro gostoso você tem...")

e fecha os olhos, com uma expressão de puro prazer (nome de banda de pagode)

eu praticamente me contorço (filha: ou você se contorce ou não. Praticamente se contorcer é o que faz uma barata mal-matada...)

Ele puxa o edredom da cama e gentilmente me empurra até que eu caia no colchão (tentei visualizar a cena e confesso que cheguei à imagem do desvio da bala em Matrix. “Empurrar” e “gentilmente” são duas palavras que evocam sensações contrárias. E “empurrar até cair”, como é? Empurra-cai-levanta-empurra-cai-levanta?)

Christian levanta meu calcanhar e corre o polegar pela sola do meu pé. Quase chega a doer, mas sinto o eco do movimento nas minhas entranhas (Tive medo. Que mistura de prazer e ansiedade é essa que faz o útero se remexer e e-co-ar?? Ou seria uma menção ao mito da vagina dentada e nós, pobres mulheres mortais em busca de prazer literário, não sacamos?)

Sem desviar os olhos dos meus, ele passa a língua, depois os dentes, pela sola do meu pé. Merda (momento psiquismo: creio que no frescor de sua juventude e virgindade, Anastasia fala “holy crap” 57867 vezes pra expressar suas novas sensações simplesmente porque não sabe quais palavrões ou palavras safadas usar na hora do sexo. Ok. Mas para nós, falantes de português, “merda” está mais para um xingamento de desabafo, decepção, raiva, infortúnio ou frustração do que surpresa prazerosa. E dá-lhe "merda" o livro todo...)

Gemo… como posso sentir isso ali? (Ali onde? Cadê? O que foi que eu perdi?)

Torno a me deitar, gemendo. Ouço sua risadinha. (No livro, o Sr. Grey é descrito como um homem lindo, poderoso, rico, dominador sexual... e dá uma “risadinha”? Chega. Brochei.)

- Ah, Ana, o que eu faço com você? – sussurra. (Dominadores não perguntam. Mandam.)

Volto à conversa com Jana. Para ela, o "Porn for the Blind" é um desses casos em que o vocabulário do texto, seja descrição, redação ou tradução, deve obedecer ao gênero para fazer sentido ou provocar o que se deseja. “Vocabulário clínico não dá tesão.”

Achei interessante a questão do vocabulário clínico, preciso, justamente porque envolve sensações. Sinestesia. No caso da tradução de obras eróticas ou pornográficas, o propósito é patente. Lê-se para sentir, e tal mecanismo envolve transformar palavras em formas visíveis. Na falta de adequação lexical, o texto pode causar mais estranheza do que deleite.

Fica a dúvida: se o tradutor não tiver uma bagagem sexual/emocional ou um vocabulário que condiga com o gênero, sua versão sairá com a naturalidade exigida?

Para fins de comparação textual, curiosidade sobre o tema e busca de sensações, sugiro a leitura de "A História d'O"., clássico da literatura sadomasoquista para mulheres que acreditam no amor e na dor.