Eu estava limpando meu escritório quando resolvi mexer em pastas antigas, do tempo da faculdade, e encontrei uma cópia do livro “Fernão Capelo Gaivota” (original em inglês: “Jonathan Livingston Seagull”, de Richard Bach, 1970). Folheei incrédula, com medo de lembrar que um dia busquei ajuda espiritual em um livro com imagens de aves que ilustram uma parábola sobre alcançar voos mais altos e distantes.

Aliviada, vi que o propósito de eu ter guardado a cópia é que, em uma aula de Oficina de Tradução, a classe decidiu que aquela era a pior tradução já feita para um livro publicado que se tornaria referência de literatura de auto-ajuda e afins.

Trata-se da história de uma gaivota que não quer voar apenas para buscar alimento e decide voar também por prazer. Sei que a obra (?) virou filme com trilha de Neil Diamond e muita gente o tinha como livro de cabeceira na era pré “O Segredo”, mas até hoje não descobri a graça da coisa.

Enfim, não quero expor meus gostos literários nem azedar quem gosta do livro, mas reli as notas riscadas a lápis e separei algumas, que tentei dividir em categorias de “estranheza tradutória e de entendimento”, digamos assim.

A edição é de 1974 e não tenho interesse em citar o nome do(s) tradutor(es). Minha intenção não é apontar simplesmente por apontar, mas lembrar que uma tradução truncada desvia a atenção do leitor e coloca em dúvida a exatidão da mensagem. Pelo menos é assim que me senti enquanto leitora.

Primeira coisa: frases desconexas, sem fluidez de sentido.

1 - “Os mais velhos estavam ansiosos por que se desse um desastre qualquer, mas estão fora de si pela maneira como você conseguiu satisfazê-los.

Em que ponto da frase a coisa se perdeu? Aposto no “por que se desse”. E o “mas” não indica adversidade a nada.

2 – “Costas de penas cinzentas viraram-se a Fernão a partir desse momento, mas ele não deu a perceber tê-lo notado.”

Suponho que “costas de penas” sejam outras gaivotas virando as costas PARA o Fernão ( e não A ele), e talvez não A PARTIR desse momento, como se fosse uma atividade linear e frequente, mas NAQUELE momento. Quanto ao trecho depois da vírgula... também não percebi ter-me notado nada.

3 – “As promessas de momentos antes estavam esquecidas, varridas por aquele enorme vento rápido.”

Este é um dos trechos que me faz suspeitar de que o tradutor talvez não fosse brasileiro. O “estavam esquecidas” pode ser substituído por “foram esquecidas”. Já o “enorme vento rápido” parece as colagens com revistas que eu fazia quando criança.

4 – “Essa é a lei da Grande Gaivota, a lei que é.” (o livro ainda traz um grifo itálico no “é” final.)

Outro caso de inadequação verbal. Não li o original em inglês para não me influenciar, mas esse “a lei que é” está mais para “ a lei existente”, “a lei que vigora”, “a lei que predomina”, “ a lei de verdade”, etc e tal.

5 – “Não creia no que os seus olhos dizem.”

Sim, eu sei que o olhar fala. Mas fala ao outro, ao interlocutor, não a si mesmo. É o que chamo de “estilo florzinha”. Não dá para ser mais natural?
Arrisco a dar um pitaco:
“Não acredite naquilo que seus olhos veem”.

Para quem escreve, a escolha das palavras é um trabalho à parte. É nela que está o sucesso e a eficácia da transposição. Quando mal combinadas, as palavras causam impacto contrário ao esperado, tiram o colorido da cena que o leitor visualiza. É como usar blusa de bolinhas com calça listrada e cinto de oncinha.

1 – “As asas eram enormes e esfarrapadas barras de chumbo.”
Chumbo se esfarrapa?
Além do mais, o adjetivo “enorme” está fora do lugar.

2 – “Quando voltou a si, a noite já era velha.”
“Noite velha”, como aqui colocado e com o verbo “era”, soa estranho.

3 – “O vento era o rugido de um monstro na sua cabeça.”
Se a intenção do tradutor era causar medo, conseguiu.

4 – “Na sua mente latejava o triunfo.”
O tradutor queria dar a ideia da força da vitória que tomou a gaivota de surpresa e a atordoou. Mas aquilo que lateja dói ou causa desconforto, não?

5 – “Não era um pássaro vulgar.”
A princípio, nada de anormal. Mas, na verdade, Fernão Capelo Gaivota não era um pássaro comum. A escolha de “vulgar” foi infeliz, devido ao maior uso de seus outros significados em português: imoral, indecente, etc.

Alguns outros que me chamaram a atenção pela falta de sincronia semântica:
voz irreal, céus estonteantes de claridade, centelha de instante, choque de alegria, suportar as felicitações, puro fora-da-lei (creio que seria “legítimo fora-da-lei”), pôr de parte (“deixar de lado”? “isolar”? “afastar”?) selvático movimento desordenado (selvático = da selva), e:

“Os dois pássaros, irradiantes, deslizaram com ele.”

Aí se trata de erro, e não inadequação. Os passarinhos deviam estar RADIANTES de felicidade, e não irradiantes ou radiotivos, pobrezinhos.

As três frases seguintes são exemplos de problemas que passaram despercebidos na revisão gramatical:
1 - Não esqueça que a razão por que você voa é comer.
2 - Não tardou muito que Fernão voltasse a pairar no céu.
3 - Era apenas mais um dos do bando.

O texto também tem um tanto de pronomes e “tracinhos cês” que poderiam ser repensados:
1 – “A voz sumiu-se.”
2 – “A lembrança da sua vida na terra sumia-se.”
3 – “Os joelhos enfraqueceram-lhe, as penas tombaram-lhe, um enorme rugido ensurdeceu-o.”
4 – “Ele não podia impedir-se de pensar.

Além disso, o livro traz uma nota de tradutor incomum, dado o seu papel básico de explicar ou acrescentar ao leitor, sem intervenção direta no texto, algum termo ou situação da língua de partida:

Na trama, a gaivota protagonista passa a tentar vários movimentos aéreos que vão além do simples subir e mergulhar para pescar. Assim:

Descobriu o loop¹, o slow roll, o point roll, o inverted spin, o gull bunt, o pinwheel.
¹Este termo e os que o seguem designam movimentos de acrobacia aeronáutica. (N. do T.).

Uma busca rápida a glossários de manobras aéreas mostra que, por exemplo, “slow roll” é o tunô lento. O caso é que a tradução data de mais de três décadas, e as ferramentas de buscas do profissional eram bem menos tecnológicas, versáteis e velozes que a Internet. Bem... aí ele sofria, mesmo. Prefiro não imaginar.

Existe uma tradução mais recente do livro. A curiosidade me chama a conferir se a beleza dessa história foi enfim revelada, pois acredito que ela esteja muito mais nas descrições e no romantismo da redação do que na trama em si.
Como nesta frase do livro, que joguei no gúgou e surgiu em vários blogs e páginas pessoais, ao lado de letras do Legião Urbana e frases de Lair Ribeiro:

“A vida é o desconhecido e o desconhecível.”

E lê-se na contra-capa: “Fernando Capelo Gaivota é uma história com sentido.”

Então, fica combinado assim.